segunda-feira, 3 de março de 2008

_prova metafísica da existência ou ensaio sobre deus

Se pudesse eu ser lírico por completo, gritaria aos deuses a agonia de sentir as lâminas amoladas do tempo ceifando o agora do agora-há-pouco, ulularia a tristeza do meu navegar nesse rio, pediria misericórdia pela angústia do pesar que passa defronte meus olhos, sussurrando-me Vê, se vê, passou. Pretendo não tardar em ir ao ponto. Lembra daquela vez em que te levei àquela casa que tanto temia no fim daquela rua...

Isso que escrevo não é nada mais que uma recordação do dia que julgo ter sido o mais importante para si, aquele em que descobriu que minha mão não é mais que inimiga tua – sim, sim, sou seu irmão, e como bom irmão, só sou bom se for companhia; como motorista de si, sou um ótimo estraga prazer! – e que aquela casa, ao final das contas, só aparentava ser mal-assombrada; em verdade, era a carapaça que lhe dava o tom medonho. Ser irmão mais velho
tem suas responsabilidades também.

Quanta saudade daquele dia. Viu como é ruim não estar sozinho para suas próprias descobertas, pergunto eu. E mais: um cemitério de onças assassinas da tribo que viveu aqui na época dantes dessa cidade ser cidade é um disparate de grau mor.

Lembro-me que estava você todo cego pelo mito da casa que uivava às noites, via nada na sua frente que não uma idéia fixa. Sua, acima de tudo. Era sua epopéia, a razão de seus maiores pesadelos e sonhos, era um mundo desconhecido que existia apenas em sua imaginação. A casa não era simplesmente uma casa – assim como um homem nunca é o mesmo. Meus anos adolescentes pediam para que te ensinasse os macetes da vida, um deles era te desfazer das fantasias pueris que ainda rondavam sua cabeça – papai noel não gostaria de saber que não mais é personagem em sua vida – tudo isso por pura sensação de superioridade. Sim, sim. Sentia-me o maioral, o deus todo-poderoso, aquele que tudo sabe; ademais, em mim palavras se rebelavam pedindo por libertação. Foi o que fiz.

Era um dia daqueles que os deuses haviam separado para o culto aos olhos fechados. Sem firulas; era fim de semana. Depois do almoço, você me puxou pelos braços com olhos típicos seus, Vamos à casa, perguntavam-me; pois diz que minto, e diz a verdade. Seus olhos nunca falariam, ao máximo, ver-me-iam; era essa minha coisa que não sei explicar que me pedia que inventasse qualquer possível sinal de súplica por parte do seu corpo: o alvará perfeito pra que minha superioridade fosse posta na mesa. Puxei seus braços trêmulos para fora de casa – morávamos no mesmo quarteirão da casa maldita, pergunto se se lembra – e pude notar que havia um freio sutil que desacelerava meu passo: era você e seu medo de defrontar-se com suas verdades – sim, eram verdades suas; cria nelas como se numa religião – e confrontá-las com o que seus olhos queriam mostrar.

Se tivesse dez primaveras, acredito que estaria a pôr anos demais para si, provavelmente sua infância estava ainda no auge – logo se pôde notar com tamanha insegurança que vagava seu pé.

A casa era grande e velha. Telhas caindo, calha descascando, pergolado de madeira colonial apodrecendo, janelas quebradas, típico de um filme de terror. Sua mão suava frio, sei que se lembra disso. Dizia para você que a dona era uma simpática senhora de terceira idade, já enviuvada, que vivia com seus passarinhos livres pela casa, sempre, aos domingos de manhã, libertava-os para um vôo idiossincrático. Recordo-me da primeira vez que conversei com ela; era mamãe e papai que queriam comprar a casa, você ainda era criança de colo, só chorava, por sorte do hic et nunc, a senhora não aceitou a troca justa. Em minha decepção, decidi criar mitos sobre a casa para difamar sua imagem no quarteirão. Dos poucos que sobraram, alguns foram modificados.

Estava você logo atrás de mim, já com lágrimas escorrendo em um choro silencioso e taciturno. Toquei a campainha em uma ritmação que havia se tornado senha de acesso à casa – a senhora saberia de quem se tratava – e abro a porta sem mesmo esperar por resposta. Tenho certeza – não adianta mentir – de que você achou que seus pesadelos eram verdadeiros, o grande salão de entrada estava escuro, permitindo que sombras tomassem formas assustadoras. Você gritou bastante aquele dia. Um grito ininteligível. Mas um grito. Seu.

Ah, mas não seria justo, para mim, deixá-lo na mentira e na hipocrisia. Acendi as luzes. Ao andar superior, podíamos ver a senhora, com um sorriso no rosto, dizia que estava saudosa e que faria um lanche da tarde para padaria alguma botar defeito. Sentia seu pulso, estava a mil por minuto,
por certo.

Não sei o que passou com você, comemos os melhores quitutes, doces, chás, pães, balas, tudo que criança gosta. Seu rosto de assustado – ao que me parecia – não te deixava livre. Saímos de lá com sentimentos opostos. Saí como vilão.


)se você pudesse...ah, se você pudesse – uma única vez – notar que não são ruas, casas, cemitério de onças assassinas, sua imaginação, vontades adolescentes, luzes. Agora você está a caminho da casa, estou se conduzindo da mesma maneira que há anos atrás; suas verdades não querem oposição. E se a rua e a casa fossem esse texto, assim como o cemitério das onças não é mais que uma metáfora para representar a metáfora ou ainda que sua imaginação fosse sua interpretação para esse texto e a vontade adolescente minha em se contar toda a verdade e pôr ao chão suas idéias fosse justamente isso que cá faço; que me dirá você se dissesse que isso que acabo de revelar é a mais pura verdade, pergunto eu. Provavelmente não cometeria o mesmo erro duas vezes. O que acabo de se desvendar é apenas uma grande metáfora ainda maior.(

Um comentário:

Guilherme D. disse...

Vamos lá! Farei algo novo: comentarei seu conto conforme eu vou lendo. Deve ficar engraçado depois ver como foi meu "caminito" até o final.

Bem, pra começar eu me vi no conto. Prepotência à parte, parecia que estava falando diretamente a mim no trecho: "Lembro-me que estava você todo cego pelo mito da casa que uivava às noites, via nada na sua frente que não uma idéia fixa. Sua, acima de tudo." Me vi à época em que li o texto dos SC. Afinal, eu puxei pro lado da religião. Depois me disse que era "senso comum", mas eu não deixei de ver crítica religiosa sua naquela ocasião.

Bem, agora vi seu tom MUITO auto-biográfico! Sim, quase certeza que "Sim, sim. Sentia-me o maioral, o deus todo-poderoso, aquele que tudo sabe; ademais, em mim palavras se rebelavam pedindo por libertação. Foi o que fiz." é você falando de seu ato de escrever à época do texto dos SC.

Ao longo do texto vou vendo você falando com você mesmo. Corpo com mente, consciência com subconsciência, não sei ao certo. Mas você é enunciador, enunciatário e enunciado. (que egocêntrico! hahah) (isso, por exemplo, no parágrafo seguinte)

"Pergolado"... hum... uma palavra um tanto polêmica! hahahah

“Você gritou bastante aquele dia. Um grito ininteligível. Mas um grito. Seu.” ... Um ponto essencial! O retomarei em breve!

Serei sincero (nunca espere menos que isso de mim) e um tanto ousado. Desculpe por qualquer excesso. Mas vi seu texto como uma metáfora de sua experiência com a religião. “Você gritou bastante aquele dia. Um grito ininteligível. Mas um grito. Seu.” Aqui pra mim representa o ponto básico, o momento de mudança estrutural.

“Saí como vilão.” Por esse trecho eu pude ver a sua “escolha final”. (final pode ser temporário)

“suas verdades não querem oposição” Bela crítica! Muito bom! Gostei da ousadia.

Bom o final também. Mais traços autobiográficos percebi.

Bem, é isso. Foi essa sua relação com a religião que enxerguei nesse texto! Parabéns. Para mim, seu melhor texto. Sincero, maduro, cristalino e profundo.

(e se eu falei besteiras, caia na tentação de pôr no chão minhas idéias como mesmo fala ao final do conto!)