sábado, 8 de dezembro de 2007

_quandonde fora ou dois passos depois do depois

Mas e se eu não der?

Inclinando seu dorso ao sul, seus pés, imóveis e medrosos não davam sinais de vida, toda vivacidade tinha-se esvaído e seus olhos tremulavam esbranquiçando a sala escura a qual estava defronte.

Chegara do trabalho, como de costume, após alguns minutos de passeio pela Paulista; sentou-se ao lado dos pombos do vão do Masp, arrulhando falatórios dos transeuntes, e não é que sua mulher hoje estava de mãos dadas com seu subordinado?, gemendo as raras migalhas de pão, os chutes ao léu. Avistava o centro paulista, entorpecido e incólume dos tiros de impassibilidade ou malfazejos in-olhares; estava completamente parte do caos paulistano – não como agente, mas como objeto.

Seus olhos se cerraram por vontade própria, calando qualquer força de vontade ou anseio em tê-los abertos; nada errado. Passara a ouvir o os vôos dos aviões distantes que desciam a Congonhas; decidira prestar atenção à maré do Pinheiros; ver – apenas com o poder de seus ouvidos – aquele acidente na Marginal: ok, menos metafísica, corpo, não somos magos, somos paulistanos! Podemos ouvir, pois não, a turba insossa... pedido aceito.

Um chiado inconstante – uma arte inoportuna e concreta – fazia um intraduzivelmente choque de percepções; o sentido do absurdo era, por si só, ridículo! Quando que tanta criatividade culminaria em tanta desordem? Só aqui mesmo, justo aqui dentro.

Passara a gostar do estudo do nada e o todo aparentemente esbanjava inexistência – sabe? ondas destrutivas – enquanto que, de súbito, aqueles mesmos olhos que haviam se fechado decidem por observar a bruaá que perturbava os ouvidos, as células sensíveis da pele, o paladar, o olfato – que não tinha – e o sexto sentido. Argh!! Quanta falta de força sobre mim mesmo eu tenho!! Seus olhos pararam, avistaram, ao longe – bem longe mesmo – um transeunte sensivelmente miúdo olhando para sua direção – não exatamente – e acariciando o ar, movimentando seus dedos como se fosse esquizofrênico. Hoje, no mundo, o que não é esquizofrênico é errado. Seus olhos cegaram-se.

Ora, pois finalmente, a posteriori de tanta inabilidade, comanda seus pés – steps taken back and forward – a caminho de sua casa. Vamos ao começo de tudo.

(Seu apartamento, otimamente localizado, com vista para tudo que lhe interessava, próximo ao trabalho, da Paulista, do Jabaquara, da Emílio Matarazzo e do Horto Florestal, era típico de um solteiro de vinte oito anos descolado, móveis de antiquários na sala de jantar – herdados pela avó – na sala de TV, uma fullHD, 1028p, 49 polegadas com transformador digital embutido, na cozinha, uma pilha de panelas, pratos, copos e talheres na pia; Quando eu precisar, eu limpo o que preciso; no banheiro, gotas se espalham; uma toalha abarrotada – ainda parece tão criança – e um sabonete do mês passado fazem jus ao estereótipo de macho: sujo e insuficiente.)

O molho de chaves que um dia foi motivo de minutos fora de casa só para descobrir qual era a correta já não intimida: é aquela com a cabeça quadrada arredondada. O elevador estava, como de costume, no térreo e ele – morava no quarto andar – que costumava subir pelas escadas decidiu mudar hoje e ir de elevador. A porta nunca pareceu tão leve, tão facilmente acessível. O espelho refletia seu olhar seriamente alegre, hígido e penetrante; ficou se encarando, como que Saia daí, não quero você na minha frente, não há ninguém nunca na minha frente – sim, era um executivo, competitivo ao extremo. Como já rotina, seu rosto tornou-se para a direita, seu dedo apartou não o quarto andar, mas o décimo terceiro, a cobertura.

A musiqueta que preenchia o cubículo era uma versão em Bossa Nova de As Tears Go By, deliciosamente brasileiro-saxônica entoando “smiley faces I can see, but not from me”...não sabia que o elevador era tão lento, o CD que tocava já havia dado voltas, extrapolo na medida, mas sim, o décimo terceiro andar parecia longe demais e vertiginosamente acima do aceito para um acrofóbico.

Estagnou

Bruscamente, o que parecia quase parado, acelerou de forma tal que e voltou, como se uma criança em fort das jogasse a chupeta ao longe só para tê-la trazida pela mãe. Seu coração nem uma extra-sístole apresentou, continuou o mesmo ritmo de costume, seus olhos, fitando-os a si próprios contra o espelho, amedrontaram-se – e não ele.

A falta de sentimento o assustara. O elevador estava já silencioso e retomando o padrão, e justamente nesse momento é que o grito dele sai, acovardado e sincero. Silencioso. Seus lábios se distanciam, um fio de saliva os une, suas cordas vocais tremem quando tocados pelo pulmão expulsando todo ar que consegue, um estrondo que fica todo ele preso naquela fina fita de baba. É notória a freqüência destruidora que assola a cola dos lábios.

Pum

Finalmente o décimo terceiro andar chega.

Um hall belíssimo, o mármore que compunha a mesa segurava um vaso chinês todo remendado – infantilmente – como se uma criança tivesse jogado sua chupeta com força tal que, com um sutil toque, puxasse o chão ao recipiente, estardalhando-o e fazendo com que seu irmão mais jovem de apenas seis anos sentisse na necessidade de arrumá-lo. E a culpa recai sobre o pequeno. Vaso podre, de fato.

A luminária do teto, toda em cristal, resplandecia o sol que estava lá fora – ah! lá fora... como deve estar delicioso o verão! – e quase cegava o pobre morador do quarto andar. Não mereço morar no quarenta e quatro, aqui é o meu lugar! Um ap. por andar!!

A porta do elevador fechou-se e este desceu para o térreo enquanto ele apreciava toda a pompa da cobertura. Seus dedos, naturalmente, socam o botão, chamando pelo elevador.

Demorava em excesso.

Queria visitar o ap., quem sabe comprá-lo num futuro. )se estava você, leitor, pensando que a porta misteriosamente abriria, saiba que o único sobrenaturalismo aqui está no próprio personagem( Posta-se contra a capainha, seus dedos, vergonhosos, empurram o botão vagarosamente e sem muita demora; aguardam uma resposta de dentro. Seu cérebro sente-se cara-de-pau, mas mesmo assim aguarda que venham atendê-lo.

A porta se abre lentamente, um breu lá dentro o sufoca. Tenta bisbilhotar, xeretar, que seja, queria poder ver através da madeira, conhecer o felizardo morador. Ao meio do caminho, a porta acelera seu movimento e completa sua abertura numa só patada.

.. .. ..

..

Era ele mesmo que atendia a si próprio! Seus olhos se esbugalharam, imóveis, seus membros tentam, a todo modo, buscar a calma, ou a raiva, ou o medo, ou a covardia. E nada muda. Posta-se chocado contra sua imagem lá dentro.

Seu rosto alvo era o mesmo de si no lado de dentro do apartamento. Suspeitou ser alvo de alguma eutrapelia ou alguma jocosidade infantil; um espelho, Um espelho!, só pode ser...Piscando sutilmente, seu olho direito brinca com sua imagem, apostando corrida, quem será o mais rápido? Confirmada a teoria. Era um espelho

)É engraçado...para ele, passado o susto, o movimento de sua mão esquerda para reacender a luz do corredor não era sentida quando essa saia de seu campo de visão no espelho. Só sabia o que existia aquilo que era mostrado no espelho – sua percepção está enquadrada nos moldes daquele pedaço de vidro.(

Aguardou alguns instantes para o pirralho sair e deixar que ele entre no recinto. Seus pêlos já começaram a relaxar, expeliam menos sudorese, estavam conscientes da situação.

Nada do moleque aparecer atrás do espelho com aquele sorriso de filho-da-puta ou de pirralho mesmo, daqueles sacis malditos. Ao decidirem por tocar a campainha novamente, seus dedos demoram a soltar o interruptor, o barulho era sua intenção; queria aproveitar seu tempo, afinal!

Cinco minutos rodados em seu relógio. E nada. Iradas, suas pernas, sem pedirem álibi do restante do corpo, chutam violentamente o espelho para quebrá-lo – ou será que quem chutou não foram suas pernas, mas ele mesmo? – e conseguem depois de algumas provas de sua virilidade.

A sala que estava atrás do espelho era visivelmente bruna, só se via o preto reluzindo no nada que havia lá dentro. Não havia vida lá dentro. Só ele em sua futuridade ou em seu pensamento. Queria, seu pé esquerdo, dar o primeiro passo, mas não conseguia. Ele não deixava.

“Mas e se eu não der?

Inclinando seu dorso ao sul, seus pés, imóveis e medrosos não davam sinais de vida, toda vivacidade tinha-se esvaído e seus olhos tremulavam esbranquiçando a sala escura a qual estava defronte.”

Os poetas confrontariam o mármore do hall com o nada do apartamento. Mas ele não; ficou espreitando, atônito, o quarto, esperando para ver o que se procedia.

Nada.

A porta, as janelas, os armários – não se sabe se havia, mas os ouvia – mexiam-se ao sabor do vento que adentrava com o corredor de ar. Não era o apartamento que se mexia, eram suas extremidades; era a naturalidade que causava alvoroço, e não a humanidade que deveria haver em uma casa.

Encorajou-se, decidiu dar um passo para dentro, e observar seu adentro: olhar para o interior sempre é o mais difícil, metaforicamente ou não; imaginem na escuridão presente!

Conseguiu; seu temor não era mais problema. Entrou, dolorosamente, mas entrou.

)Sabem quando sonhamos que estamos caindo de um penhasco e acordamos em nossas camas?(

Barulhos, gritarias, uivos, farfalhadas, choros. Um turbilhão de sons assustadores adentrava aos ouvidos dele, martelando seu cérebro, danificando sua audição. ... o silêncio – foi a primeira coisa que existiu – reinou; ensurdecera. Cego, surdo, inolfatente. Sua mão e sua boca. Era o que lhe sobrara.

Andava descontroladamente procurando a saída, chutava o chão – e nem isso havia de fato – e buscava tocar a parede. O apartamento era vazio suficientemente para não haver nada num raio de bons metros.

Estava assustadíssimo, não sabia para onde ir, não poderia sair dali sem ajuda. Queria chorar. Forçava suas lágrimas a cair: seu choro foi na medida certa, deixou-se liberto flutuando no nada. Alagou a região próxima a si, deixando que sua juventude transbordasse naquele mundo tão aterrador e terrível – nefando! – e sentiu-se um bebê.

E como um bebê levantou, engatinhou pelo quarto, como se buscando sua mãe. Só sentia a si mesmo, o chão era etéreo e não concreto, seu pranto derramado congelava antes de encostarem-se a suas maças do rosto.

Socou o ar. Sorriu o nada. Gracejou consigo. Chorou a falta de tempo.

Seu bel-prazer era tanto, sua força era tanta que explodiu sua cabeça espalhando-se ao apartamento. Passou a se concretizar uma vida estranha no quarto – ele não via, não ouvia, tampouco tateava, só sabia de sua existência.

Voltou a engatinhar, sentia o mundo concretizando-se, sem vê-lo.

Passado o passeio, sentiu um leve pontapé em sua mão, sabia que estava com alguém e que esse passou a vigiá-lo desde alguns parágrafos. Subiu seu olhar – só instintivamente, não via naquele breu – e, como mágica, viu o olho de seu anjo, encarando-o seriamente, eram olhos de vidro, transparentes, em fato, via-se através dos olhos, via a alma. Sorriu como quem nada quer. Sabia quem era.

Sentiu tudo que estava exposto naquele imo, sem medo, participou, dividiu experiências e sensações, criaram um elo de modo tal que o mundo não mais existia em suas voltas, só havia vida ali. O quarto passou de existir.

A cegueira mantinha-se, o sorriso ingênuo e a sensação de gozo só foram banidas quando, no devido momento, no instante necessário da parada, só havia ele, o elo acabou, não mais era necessário. Seu anjo havia se esvaído, estava abandonado novamente no quarto.

Os olhos cerrados na instintividade se abriram. Estava em casa e assaz leve – o bastante. Queria provar ao mundo que não ficaria reprimido ou incondicionalmente súdito – nem de ninguém, nem da linguagem, nem de si próprio.

Em dois instantes, foi para a sacada e se jogou.






)Já notaram como o mundo é possessivo? No fim de tudo, o que era dele? Ele mesmo. O que era de seus sentimentos? Os sentimentos.

Em realidade, nada disso aconteceu. E o que aconteceu, não consegui escrever. A infelicidade do escritor é ser sempre verdadeiro. A mágica do conto está quando se lê de olhos fechados.(